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A vida não tem trilha sonora...
Quer dizer, é claro que podemos colocar uma boa playlist nos fones enquanto levantamos peso na academia, no carro indo pro trabalho ou naquele encontro romântico… Mas, na maior parte do tempo, o que nos resta provocando nossos sentidos é 📢 “o carro da pamonha passando agora mesmo pela sua porta” às 7:00 da manhã… O discar incessante do telemarketing, a gritaria das crianças correndo e brigando pela casa, a buzinada constante de gente estressada pra quem mora na cidade ou o barulho ensurdecedor das cigarras em época de chuva pra quem se esconde no meio do mato como eu 🙂
As interações humanas também não são cinematográficas.
O elenco não é tão bonito, nem sempre temos algo brilhante a acrescentar, as pessoas podem ser chatas e o tempo pode parecer passar muito devagar, sem cortes rápidos ou mudanças de cenas dinâmicas.
A ausência de roteiro faz parecer que nem tudo tem um sentido que se revelará em breve e nem sempre o final feliz se desdobra após uma grande discussão.
Talvez seja por isso que eu esteja momentaneamente fascinada em The Office.

Se você ainda não teve o prazer de assistir (geralmente desistem na 1° temporada), não se preocupe, não darei spoilers 🤐 Trata-se de uma série simples, ao estilo “documentário improvisado”, com seus longos diálogos inúteis e uma trama centrada na rotina banal do escritório de uma tediosa fornecedora de papeis. A naturalidade de seus personagens — com todos os defeitos, esquisitices e falhas — e a óbvia ausência de glamour… Fez dela um retrato curiosamente autêntico do que é a vida real.
A escolha dos atores, inclusive os que são tidos como atraentes, também demonstra o quão descolados nossos padrões estão da realidade. Quer dizer, Jim não é nenhum Henry Cavill ou Matthew Mcconaughey e ainda assim eu desconheço qualquer mulher que tenha assistido a série e não tenha concordado que ele é um partidão (falei como uma tia cinquentona agora?😅 Bem, prosseguindo…)

O mesmo vale para a mocinha bonita da história. Pam, sem preenchimento labial ou um corte em camadas de caimento perfeito (nada contra nenhum dos dois procedimentos estéticos, inclusive varia), é desejada por boa parte da classe masculina do elenco. Sem precisar ser a Megan Fox ou a Sydney Sweeney para isso.

Não é novidade nenhuma que as redes sociais serviram como uma seleção natural ultra rápida e cruel, resultando em padrões de beleza e comportamento absolutamente irreais. (Me sinto escrevendo uma redação pro enem de tão óbvia é essa minha conclusão, mas às vezes o óbvio precisa ser dito, sendo esta última sentença outra obviedade.)
Me parece que grande parte da nossa insatisfação com a vida não se deva apenas a mediocridade de nossas escolhas (outra grande parte se deve a isso, de fato), mas também a expectativas irreais sobre o que é a existência.
Se a Realidade é o trono da Verdade, logo, para contemplar a última, eu preciso me instalar na primeira o quanto antes.
Eu sei que isso pode ser bem difícil, especialmente para nós, coléricas ou melancólicas, já que a veia perfeccionista e, por consequência, controladora, se encontra em nossos temperamentos 🙈 Um dia ouvi que melancólicas sentem saudade da perfeição celestial que ainda não viveram. E de alguma forma isso é lindo. As imperfeições terrenas são realmente indesejadas, mas, no entanto, contudo, entretanto… Inevitáveis 😬
As pessoas serão chatas, inclusive nós (afinal, temos rompantes de chatisse muito mais comuns que nos damos conta), a pele perfeita cheia de blur do instagram não existe, nós gaguejamos na vida real, e nem sempre sabemos o que dizer, nós erramos e precisamos pedir perdão, escrever, apagar e reescrever. Ninguém está escrevendo o roteiro por nós e nós mesmas só podemos escrever as nossas falas e as nossas atitudes…
Na vida real, os dias podem ser entediantes. Noutra carta conversamos sobre o sofrimento. Temos muita dificuldade de lidar com o sofrimento. De modo semelhante, o tédio também nos apavora. Procuramos escapar dele a todo custo nos entupindo de reels e tiktoks, porque se o experimentarmos um pouquinho temos a sensação de que há algo de errado. Mas a verdade é que se houver, de fato, algo de errado, é preciso ócio para desvendá-lo e solucioná-lo. E se não há nada de errado, precisamos entender que o tédio por si mesmo não é indício de um mal desfecho, é apenas a vida real. E nós podemos muito bem, como adultos, lidar com isso.
Nós podemos sobreviver às saídas meio sem graça, silêncios constrangedores e gente mastigando de boca aberta ao seu lado no almoço. Podemos sobreviver ao incômodo e a monotonia intríseca da vida. A maior parte das coisas não parecerá ter nenhum propósito imediato. Ou nenhum propósito grandioso. E ainda assim, têm de ser feitas. Sejamos bem vindas à vida adulta! 😆
Não estou de modo nenhum abrindo mão do Ideal. Precisamos de ideais de referência. O ideal da boa conduta, o ideal da Beleza, o ideal de santidade, o ideal da paz… Não há coragem, fortaleza ou esperança sem ideais. Precisamos deles. Não quero que se tornem cínicas ou preguiçosas ou acomodadas. Quero, ao contrário, que essa reflexão traga algum tipo de alívio. Imperfeções, apesar de indesejadas, são inevitáveis. Em si mesma e nos outros.
Talvez uma boa solução para isso isso seja a tal da romantização da vida. E eu acredito nisso. Acredito que você pode romantizar sua vida tomando melhores decisões. Tendo um bom ritual da manhã, relaxando em um banho quente, passando aquele creme hidratante cheiroso, se conectando ao presente, cercando-se de coisas bonitas… Isso tudo é uma forma de aproximar-se do Ideal, e tem todo o mérito por isso. Apenas não desista do processo só porque ele não equiparou-se ao filme, perfeitamente roteirizado na sua cabeça. Quando abraçamos esse mundo fantasioso interno e rebelamo-nos contra a realidade e suas frustrações, corremos o risco de nos perder.
O extremo disso são aquelas pessoas descoladas e desiludidas com a realidade que se casam com robôs, adolescentes que se vestem de modo absolutamente inapropriado e se afastam do convívio social para viver sua própria realidade artificial (por meio da tecnologia e/ou imaginação, como no famoso shifting).

A realidade é o trono da Verdade. Procurar escapar dela é viver uma mentira. É dessa alienação que nascem as maiores ideologias como formas de manipulação política. É o que faz as pessoas engolirem a noção de “homem grávido” 🫠

Se isto lhe pareceu extremista demais, posso citar um exemplo mais suave deste fenômeno. Quantas mulheres não se casaram ainda simplesmente porque não encontraram “o homem perfeito”. Alguns acusam filmes e livros de romance no geral por este desdobramento e eu acho que há um exagero nisso… Mas eu não posso negar que exista um tipo de submundo literário/cinematográfico de cultura mais, digamos, desnutrida de valores que, se consumida em excesso (todo fast food, inclusive cultural, em excesso, faz mal) pode sim corromper o imaginário de dezenas de jovens mulheres por aí, fazendo-as desejar um relacionamento composto de contínuos picos de satisfação e deleite e não o que, de fato, os compôe: um bucado de sacrifício, imperfeições, desencontros, perdão e decisão…
Isso me leva de volta à The Office. É por isso que gostei tanto da série. Ela me fez olhar a vida de outra forma. Encarando o próprio ócio e tédio como parte do roteiro.
Seja como for, a melhor parte do roteiro da vida real é que você, apesar de não ter controle sobre todas as cenas ou personagens, pode escrever as partes que te cabem como protagonista da sua própria história. Você é a única responsável pelo que fará ao terminar de ler esta carta, o que fará com o resto do seu dia, da sua semana, do seu ano, da sua vida.
Seja o que for que dicidir, lembre-se disso…
Ame a realidade como ela se apresenta diante de você, tanto quanto ama o Ideal que te move dentro dela.
Até a próxima, damas! Beijinhos💋
Sara Duelli
Obs.: Os comentários da última carta foram os meus preferidos de todas 🥰 Eu simplesmente AMO ler o que se passa na cabeça de vocês e compartilhar o que se passa na minha ❤
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