Uma farsa prestes a ser descoberta.

Eu tinha oito anos de idade quando me batizei, na antiga congregação evangélica onde nasci. Lembro claramente de estar de pé logo após o momento de louvor, no local de cultos dominicais, enquanto o presbítero apresentava os novos convertidos e eu, ao observá-los atentamente, chegava à conclusão de que eles pareciam… Diferentes.

Alguns ali eu conhecia de antes e, agora, vendo-os com atenção, pareciam mais… Brilhantes✨ hahahaha Não sei descrever muito bem…

Sei que, ao constatar aquilo, puxei a manga da camisa de meu pai e fiz ele abaixar-se para cochichar-lhe no ouvido: “Quero me batizar.”

Pedido feito e realizado, algumas semanas depois minha mãe me apresentou a Apostila.

A Apostila era um livrinho fino cheio de versículos em ordem contando a história de Jesus, começando pelo evangelho de São João e passando por Atos, voltando para Isaías e assim por diante, os quais toda a congregação precisava memorizar.

Todos os pais eram instruídos a educarem seus filhos desde sempre naqueles versículos, mas minha mãe havia decidido que só me faria conhecê-los depois do batismo. E assim o fez.

Junto à Apostila, eu ganhei um caderninho e várias canetas coloridas para que eu escrevesse cada sentença e, em seguida, minhas anotações sobre elas. Animada, abri a primeira referência (João 1,1-3), li e reli várias vezes, colei post-its pela casa e recitei por dias até tê-la na ponta da língua. Eu tinha adorado aquilo. Sempre amei estudar, ler, consumir cultura e desvendar todos os conhecimentos possíveis, e aquele era fascinante.

Na quarta-feira seguinte, recebemos em nossa casa alguns amigos, entre eles um líder influente na congregação. Quando ele chegou, orgulhosa como estava 😆, corri até ele e, empolgada, recitei o versículo que havia memorizado com um grande sorriso no rosto.

Minhas intenções com certeza não eram puras 😂 Eu queria aprovação e, apesar de provavelmente ter trocado as sílabas de “intermédio”, finalizei a última oração muito contente, esperando receber um “uaaaauuu” animado e um tapinha nas costas.

Bem, não foi nada disso, hahahahaha Ele me ouviu com uma expressão muito séria e, quando terminei, deu um longo suspiro para acrescentar: “Meu filho mais novo que você já está na Apostila 2.”

Meu sorriso murchou, como podem imaginar, hahahaha Eu esperava ganhar os parabéns e ganhei uma grande repreensão 😂

No domingo seguinte, esse mesmo senhor, com boas intenções, eu imagino, pegou o microfone e disse a toda a congregação as seguintes palavras: “Irmãos, eu também queria exortá-los a ensinarem os filhos de vocês os versículos das Apostilas… Outro dia eu fui na casa de um irmão e a filha dele, mais velha que meu caçula, mal sabia João 1,1-3!”

Uma risadinha baixa percorreu a congregação e minhas bochechas queimaram. Eles não sabiam que estavam rindo de mim, mas eu senti como se soubessem.

Para piorar a situação, ao final do culto, um menino muito inteligente que estava ao meu lado, por quem eu nutria aquela admiração de primeira infância, riu e comentu: “Rá! E aquela menina que não sabia nem João 1,1-3!” 🙈

Hahahahahhaha, riam comigo dessa história boba, trágica e ridícula, a qual eu só me lembrei muito tempo depois, em uma sessão de terapia que procurava rastrear a origem do que era, na época, um dos traços mais latentes da minha personalidade:

Desde aquele domingo, tomei pavor da ignorância e passei boa parte da minha infância e adolescência estudando todos os assuntos que pude, consumindo toda cultura que conseguia, para nunca mais me embaraçar por ignorar algum tema ou referência.

Pobre de mim…

Como se pudesse saber de tudo! Como eu poderia nunca mais ser sobressaltada em alguma ignorância se nem em um milhar de anos eu poderia acumular todo o conhecimento do mundo? Certamente era uma empreitada impossível e, por isso, eu vivia frustrada, ocultando minha ignorância com um sorriso orgulhoso, manipulando as conversas para os lados dos assuntos que eu dominava…

Por muito tempo eu me senti uma farsa.

É como se as pessoas estivessem por um triz de perceber que eu não era tão bonita, tão interessante ou tão inteligente quanto podia parecer à primeira vista (e que me esforçava muito para tal).

Até porque… Bem, é verdade: eu realmente não sou tão bonita, tão inteligente ou tão interessante quanto minha maquiagem, roupas, os assuntos que abordo (sempre na minha zona de conforto) sugerem…

Esse apego à minha própria inteligência era apenas uma forma de idolatria… Sabe como antigamente as pessoas adoravam Afrodite (a deusa da beleza e da sexualidade) ou Hércules (o deus da força)? Pois eu adorava a inteligência, e ela era minha deusa. Acontece que toda idolatria tem um preço que consome a alma…

Nas palavras de Foster Wallace, o romancista suicida:

Todo mundo adora alguma coisa. […] Se você adora dinheiro e bens, se são eles que dão sentido a seu viver, então você nunca sentirá que tem o bastante e viverá insatisfeito. […] Adore seu corpo, sua beleza, seu poder de sedução, e você sempre se achará feio. E, quando o tempo e a idade começarem a aparecer, você morrerá milhões de vezes antes que lamentem de verdade sua morte. [Não foi isso que impediu a pobre Susana de desejar voltar a Nova Nárnia, a figura do paraíso?] Adore o poder, e acabará se achando fraco e amedrontado, e sentirá necessidade de ter cada vez mais poder sobre os outros para anestesiar seu próprio medo. [Não é isso que consome os tiranos ditadores?] Adore seu intelecto, enxergando-se como alguém inteligente, e acabará se sentindo estúpido, sempre à beira de ser descoberto.”

- Foster Wallace

Tornar qualquer vício o centro de sua vida só pode te afastar do Bem. Mesmo coisas aparentemente inofensivas (com cara de virtude), como a estudiosidade, a excelência, a expressão da beleza e do aprimoramento, o trabalho e a dedicação, se levadas sem temperança, nos consomem…

Meu desejo é que vocês, queridas damas, aceitem com humildade suas carências… A carência de inteligência, de beleza, de poder ou de recursos. Negar nossas imperfeições é o primeiro passo para a loucura, embora isso não signifique que deixaremos de nos aprimorar. Afinal, para citar Aristóteles:

“A virtude é um meio-termo entre dois vícios.”

- Aristóteles

Até a próxima, damas! Beijinhos💋

Sara Duelli

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